FLÁVIA ROCHA – POEMAS PUBLICADOS NA BABEL
BATE-PAPO COM A POETA FLÁVIA ROCHA,
EDITORA DA REVISTA RATTAPALLAX (Nova York) EM SANTOS
28/6/2013 – sexta-feira, 19h30, na Livraria Realejo, Santos-SP
Ademir Demarchi, poeta e editor da revista Babel Poética conversa sobre poesia contemporânea e edição com Flávia Rocha, poeta, editora da revista americana Rattapallax (Nova York) e fundadora da AIC – Academia Internacional de Cinema (São Paulo). Flávia, que já teve vários poemas publicados em Babel, é autora dos livros “Quartos Habitáveis” (Confraria dos Ventos, 2011) e do livro de poemas bilíngue “A Casa Azul ao Meio-dia/ The Blue House Around Noon” (Travessa dos Editores, 2005) e fará também leitura de seus poemas.
A REVISTA RATTAPALLAX, editada em inglês, está disponível em app gratuito para aplicativos da Apple no site i-tunes
POEMAS DE FLÁVIA ROCHA
– PUBLICADOS EM BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica n.º 6, Santos, jan-dez/2003
AQUELAS BAILARINAS
No canto direito, no teto do meu quarto,
de vez em quando, vejo um móbile:
sete bailarinas e uns guarda-chuvas.
Fica girando por dias, depois desaparece.
*
Dou-lhes nomes, quando posso.
Uma bailarina (eu a chamo Larissa)
tem o péssimo hábito de bocejar
quando estou lendo. É a menos
atraente entre elas, com uma perna
mais fina que a outra e a maquiagem
excessiva: um risco sobre a boca
os olhos desproporcionais.
Toda hora ela estremece
de um jeito esquisito, como se
quisesse despendurar-se do teto.
Um dia ainda despenca, toda quebrada,
numa página da autobiografia de Nabokov.
*
Samantha toca bandolim,
mas nem sempre consigo escutá-la.
Preciso estar semi-consciente, surda
às conversas alheias, à multidão
que se ergue fora livros dentro
da vida atemporal do meu quarto.
Samantha sabe quando estou fingindo.
Ela vigia minha respiração, meu pensamento.
Quando adormeço, toca
bandolim, inspirando os sonhos.
*
Judith está fora do peso.
Enquanto as outras dançam, ela gira
primeiro para um lado,
depois para o outro.
Carrega um guarda-chuva de borracha
branco com bolas vermelhas. Apesar
do porte e da falta de talento, Judith
tem o respeito das demais. Ela leu
a Divina Comédia, fala esperanto,
pode recitar dez mil versos de cor;
quando as outras desaparecem
ela hiberna dentro de um livro.
*
Letícia e Suzana são gêmeas
univitelinas. Há algo vulgar no modo
como elas cruzam as pernas,
o ar disperso, insolente. Não lêem,
e provavelmente não hibernam.
Comem qualquer coisa: mosquitos,
spray de cabelo, poeira, ondas de radio.
Riem tão alto, que chega a ser
embaraçoso trazer pessoas em casa.
Fazem de tudo para chamar a atenção:
atiram-se contra as paredes, performam piruetas
escandalosas. E quando alguém
finalmente as toca, ficam irritadas.
*
Karen é a única que faz sombra
quando a luz está acesa. Ela acha
que pode nos confundir: se a luminária
da minha escrivaninha está acesa, ela se projeta
sobre um pôster A Dança, de Matisse;
se a lâmpada do teto está acesa, deita-se,
fazendo formas, sobre a autobiografia de Nabokov.
Há um truque, que eu não sei explicar:
de vez em quando, ela aparece ao pé
da cama, imóvel, sem que haja qualquer
fonte de luz vindo de cima. A mágica
dura uns dois minutos. A sombra vai sumindo
até que desaparece, seguida por um apito.
*
Uma bailarina é visível só por uns segundos
quando abro a porta. Tem um guarda-chuva
cor-de-limão. Vejo-a tão pouco, que não me
acostumo a chamá-la de Isadora ou Lisa ou Nádia.
* * *
NATUREZA MORTA (SERTÃO)
Estrada rasgada de um ponto indefinido a outro no mapa –
– oeste sempre,
tarântulas, milhares de manchas escuras movendo-se em ritmo lento
e constante.
Você quer lembrar o nome do homem ao volante, o nome do menino
que vende santinhos à porta da igreja, e o daquele que caminha ao lado de um bode.
Nome comum numa terra seca,
repetido a cada chegada, porque se chega
repetidas vezes. Em toda parte, sol sobre a planície, e um córrego no pensamento:
mesa em casa de barro, uma garrafa de aguardente, uma lasca de pão.
NATUREZA MORTA (LÍRIOS)
Alguém deve ter movido algo, deixado cair um prato, e depois
foi varrendo tudo escada abaixo –
os cacos, com uma vassoura de palha.
Curvas, andares, territórios em contínua
suspensão – janelas no ciclo monástico, nada para ver lá fora
numa hora como esta,
ou escutar: um nada sonoro sobre a madeira,
entre as rendas da toalha. Cesta de frutas. Jarro de água.
A província que inventamos todos os dias: tradição quebrada acidentalmente –
ergue-se um monumento num canto qualquer,
o corpo exposto, quase consumido: perfeito
e irreparável. Digo-lhe entre –
Há mais lírios nos vasos, há menos gente do que antes. Tudo continua
visível e intocado.
PUBLICADO EM BABEL POÉTICA N.º 3 – Fronteiras, Santos, 2012.
cidade das pontes
Cinco galhos a partir da rosa morta. A jardineira mexicana me disse quando compramos a roseira. Um corte angular e rente. A tesoura meio solta na luva sem marcas de uso, asséptica, com cheiro de borracha. Os galhos túrgidos caem no chão, abortados do futuro amarelo.
Os gatos saíram pela primeira vez. Liberdade inconcebível. Nunca antes a possibilidade de matar, de sumir. Os corvos são a realidade, a temperatura, a folhagem. O azulão no parapeito da janela, numa das primeiras manhãs, o bico negro comprido, parece impossível. Olho de novo, ele está ali.
Os frisos na madeira como um documento antigo. Pregos, cabos, ganchos, sombras. Os armários pequenos demais para validar a nossa ansiedade por transformação. As gavetas pesadas na cozinha um dia estocaram batatas no inverno. Chumbo debaixo das camadas de tinta.
Veja como crescemos, como nossos cabelos estão menos ondulados no frio, como a varanda é grande o suficiente para uma piscina no verão. Fotos, recortes, combinações. O verde é mais verde, o vermelho, menos vivo. Escolher é ocultar. Editar é mentir.
Amanhã iremos ao parque. Como se faz um piquenique: a intuição de uma vida distante em aberto, como uma possibilidade. A mulher que empurra um carrinho de bebê na seção de frios do supermercado sabe de algo que eu não sei. E as frutas da estação continuarão frescas amanhã.
Na calçada, na rua movimentada, uma mini-instalação: um cavalinho de brinquedo, minúsculo como uma fada, amarrado a uma argola enferrujada fincada no meio-fio, souvenir transposto de um outro século. Duas pessoas se olham, dizem algo sobre cavalos, atravessam o portal do tempo, farol aberto.
Cruzar a ponte, acompanhar um córrego, descer um vale, seguir trilhas para um campo de uvas e química, ou pisar na areia grossa numa paisagem gelada de rochas. Incrustada na montanha, a cachoeira hipnotiza, desvia. Uma criança de shorts constrói um castelo na areia macia e quente.
Dois rios cortam a cidade, como cortavam a outra cidade onde morávamos. Mas estes rios cantam. Estes rios se fazem escutar. Quanto voltarmos, um dia, talvez eu escute as lamentações dos rios na outra cidade. Também há os trens, os trilhos ao leste, ao oeste, ensurdecedores.
Musgo nos troncos dos pinheiros, umidade constante na floresta, suspensa no ar. Brilho no asfalto fino das estradas perdidas — todas com opção de retorno. O meio do nada tem um cheiro preciso, calculado em mapas. Trilha percorrida em exatamente duas horas e quinze minutos. Transcendente, na névoa escassa.
Era para estar chovendo, mas o sol, radiante, ilumina a rua, vento nos galhos no fim do outono, nos arbustos de bambu que formam um muro natural, permanente. Poucas coisas são permanentes. O verde retornará daqui a alguns meses, vibrante, sob uma luz menos angular e alaranjada.